sábado, 29 de setembro de 2012

Histórico das Constituições Brasileiras: raízes do Brasil nos preâmbulos das constituições americana e brasileira


Apesar do preâmbulo das constituições americana e brasileira não serem necessariamente imbuídos de conteúdo jurídico significativo, por meio de uma comparação é possível obter alguns insights sobre o processo de formação histórico político que marcou a promulgação da "Constituição Cidadã".

Logo nas primeiras palavras de cada preâmbulo, lê-se "Nós, o povo..." (We, the People) na Constituição americana e "Nós, representantes do povo...." na Constituição brasileira e em seguida uma série de princípios e anseios tidos como comuns a cada povo, neles incluídos o objetivo de formar uma União na Constituição americana e um Estado Democrático, na Constituição brasileira, a proteção aos direitos fundamentais individuais e sociais e finalmente, na Constituição brasileira, a proteção de Deus, menção esta não presente na Constituição americana.

"We, the People..." ou "Nós o povo..." apresenta os autores da Constituição americana, ou seja o povo americano, as pessoas, indivíduos que, unidos com anseios comuns de imigrantes europeus ingleses, irlandeses, franceses (etc) tinham um ideal revolucionário, desencadeado essencialmente pela falta de liberdade: liberdade de opinião, de discurso, de religião, de associação, dentre tantas outras limitações que existiam na racionada Europa do século XVIII e XIX, auge da imigração europeia aos Estados Unidos. Estas pessoas desejavam formar uma nação, um país onde a liberdade seria preservada em todas as suas dimensões em prol do bem comum.

A Constituição brasileira de 1988, tal qual sua antecessora, a Constituição de 1967 que foi imposta pela Ditadura Militar, não foi fruto de nenhuma revolução. O autor da Constituição de 1988 não é o povo brasileiro, mas sim, representantes do povo, deputados e senadores, eleitos por voto direto e obrigatório, respeitado o sufrágio universal, que em uma assembleia constituinte, criada especificamente para o fim de promulgar uma Constituição, discutiram e votaram os termos do que seria a "Constituição Cidadã", focada essencialmente na concretização de direitos e garantias fundamentais individuais e sociais e na constituição de um Estado Democrático com objetivo de construir uma sociedade livre, justa e solidária. Por isso, o preâmbulo da Constituição brasileira começa com "Nós, representantes do povo...".

Na verdade, nenhuma das Constituições brasileiras foi fruto de revolução. Nem mesmo a primeira delas, a Constituição de 1824 pode-se dizer fruto de uma revolução popular. Apesar de ter sido publicada após "Ouvir-se no Ipiranga o brado retumbante de um povo heróico", ou seja, após a independência, sabe-se que tal episódio assume no hino nacional função meramente poética e musical.  Quem duvidar, basta ir até o Museu Paulista e ver o "Independência ou Morte" do Pedro Américo. A obra põe a monarquia no centro das atenções. O brado retumbante foi do Dom Pedro II ali no meio. Aqueles outros ali em volta eram provavelmente portugueses também: andavam a cavalo com roupas europeias. Ali no lado passa um pessoal fazendo as tarefas do dia a dia apenas observando.



Se a declaração tivesse sido feita com o intuito de fraudar os credores dos portugueses, principalmente a Inglaterra (declara a independência e isenta os bens de Portugal no Brasil das cobranças), a declaração da independência do Brasil, naquele contexto histórico, poder-se-ia dizer, no máximo, uma revolução portuguesa. A inferioridade bélica e marinha portuguesa não permitiram a Dom João VI tamanha revolução. Antes do "brado retumbante às margens plácidas do Ipiranga", Dom João VI limpou os cofres do Banco do Brasil e entregou tudo, cerca de 50 milhões de Cruzados aos ingleses.

É o início do processo de endividamento externo brasileiro, mantido até hoje. A independência brasileira, longe de ser um movimento revolucionário, agradou a todos e contou, inclusive, com o apoio da Inglaterra. Neste caso, a Ação de Cobrança é proposta em qual foro? Quem seria o legítimo passivo? Qual a Lei aplicável para os casos de dívidas anteriores a declarações de independência? O Brasil "herdou" a dívida deixada pelos portugueses e até hoje se arrasta para pagar.

Assim como a Constituição de 1988, a Constituição de 1891 foi fruto de um "Congresso Constituinte", e da mesma forma, as suas subsequentes Constituições de 1934 e 1946. De 1824 até 1988, o Brasil oscilou entre Constituições constituídas por processos declaradamente democráticos de assembléias constituintes e Constituições outorgadas, como a Constituição de 1937, outorgada por Getúlio Vargas e de 1967, imposta pela Ditadura Militar. Nunca houve, no entanto, uma Constituição elaborada fundamentalmente pelo povo brasileiro, assim como a Constituição americana, elaborada como fruto de uma revolução.

O fato de nunca ter ocorrido nenhuma revolução no Brasil se deve fundamentalmente ao processo histórico de formação política, institucional e educacional dos brasileiros que é marcado mesmo até nos dias de hoje pelo modo de vida dos povos ibéricos.

Embora seja difícil atribuir generalidades a uma população de um país, há uma característica essencial na nação brasileira que lhe pode ser atribuída: a herança do modo de vida dos povos ibéricos. Desde o descobrimento em 22 de abril de 1500 até os dias de hoje, o Brasil teve seu processo de formação cultural e institucional fortemente influenciado pelos povos ibéricos, essencialmente pelo povo português. 

Portugal foi uma grande potência nos séculos XVI, XVII e XVIII e até começo do século XIX quando  a Inglaterra começou o movimento de proibição de tráfico de escravos, sob pena de embargos econômicos. As grandes navegações e o tráfico de escravos impulsionavam a economia portuguesa como nenhuma outra graças a localização geográfica e o avanço de técnicas e escolas de navegação. 

O modo de vida português se opõe diametralmente aos dos demais povos europeus. Mesmo os povos do Norte da África, que mantém relacionamento constante e frequente com a Europa diferenciam europeus e portugueses. Em nenhum outro povo a personalidade assume papel tão importante. 

Entre os povos ibéricos não há orgulho, nem união, nem coletivismo e muito menos solidariedade, mas sim, vários indivíduos, intelectuais ou não, aventureiros, altruístas, referências em moralidade e excelência, protagonistas da própria história que, dependendo dos valores de sua personalidade, principalmente da sua humildade, alcançarão o fim supremo da existência: o ócio, a mordomia e as prerrogativas inerentes à aristocracia portuguesa da época das navegações e da escravatura. Uma nação que valoriza essencialmente os valores da personalidade, de um homem forte em um meio hostil em detrimento da solidariedade, da garantia e da certeza sobre o futuro e o comprometimento com as futuras gerações.

Não há razão para revolução entre o povo brasileiro, pois "No fim tudo dá certo, Se não deu certo ainda é porque ainda não chegou no fim". Sempre houve e sempre haverá uma monarquia, uma elite latifundiária ou uma elite intelectual - a serviço da elite dominante em troca de alguns espelhos e benefícios surreais o suficiente para se verem distante do povo e se julgarem membros portadores de uma carga genética/esforço que os faz diferentes a pontos de pertencerem a uma pseudo elite econômica. Com a humildade digna do carinho e da doçura brasileira se apresentarão como "representantes do povo brasileiro" e "tocarão" as instituições e constituições brasileiras sob o manto de serem os representantes legítimos de um Estado declaradamente democrático. 

Além de apresentar esta diferença fundamental de autores no preâmbulo, há também uma diferença marcante relacionada a forma de Estado adotada por cada nação. É que o Brasil é uma República Federativa, ou seja uma federação de Estados, entidades territoriais autônomas politicamente e que transferem esta soberania para o ente federal, a União. Apesar de os Estados Unidos também serem uma República Federativa, ele reserva consigo algumas peculiaridades referentes à uma União Federativa. Os Estados possuem maior autonomia em prol da preservação da liberdade. Cada estado julga-se diferente e dotado de peculiaridades dada a dimensão continental que o país assume. Assim, cada um deles pode ter legislações distintas, ao contrário do Brasil, onde a legislação é a mesma para o país inteiro, podendo os Estados adotarem legislação especial desde que não contrarie a legislação federal e constitucional.

As Constituições estaduais brasileiras tem sua supremacia garantida pelos procedimentos de controle de constitucionalidade dos Tribunais estaduais, no entanto, se contraria a Constituição estadual, também contraria a Constituição Federal. Os textos chegam a ser repetidos em muitos artigos. O princípio da simetria evidencia o baixo grau de liberdade que os Estados brasileiros dispõem.

Por fim, o Brasil invoca a proteção de Deus no preâmbulo. Apesar de ser um Estado laico, os dois Estados apresentam inclinação religiosa criando overlaps entre o direito e a religião. Não só no preâmbulo da Constituição, como em salas de Tribunais se vê o crucifixo e no Direito americano, testemunhas assumem o compromisso de falar a verdade com a mão direita sobre a Bíblia.

A "proteção de Deus" foi alvo da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2076-5, de Relatoria do Ministro Carlos Veloso. Nela, o Partido Social Liberal - PSL questionava a inconstitucionalidade da Constituição Estadual do Estado do Acre por omissão da expressão "proteção de Deus" em seu preâmbulo. No julgamento, o entendimento que predominou foi o de que o preâmbulo da Constituição não constitui norma central e que a invocação da proteção de Deus não se trata de norma de reprodução obrigatória na Constituição estadual, não tendo força normativa.

Estas as considerações sobre os preâmbulos das Constituições americana e brasileira. Ambos apresentam seus autores, forma de Estado, princípios e objetivos. As primeiras palavras de cada Constituição nos permite o debate de questões fora da caixa e da pauta. Era essa a ideia. A que nos reportam os preâmbulos? E como foi que o povo americano conseguiu fazer uma Constituição sem uma constituinte? Eram quantos habitantes? Será mesmo que todos os países precisam convocar constituintes para fazer Constituições? Como conciliar e incluir a elaboração de uma Constituição na cultura de uma população? A reflexão nos traz mais perguntas do que conclusões.

Inteiro do teor dos preâmbulos:

"We the People of the United States, in Order to form a more perfect Union, establish Justice, insure domestic Tranquility, provide for the common defence,[note 1] promote the general Welfare, and secure the Blessings of Liberty to ourselves and our Posterity, do ordain and establish this Constitution for the United States of America".

"Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL".

REFERÊNCIAS:

Constituição do Brasil

Constituição dos Estados Unidos da América

FINE, Toni M. American Legal Systems: a resource and reference guide. Lexis Nexis: San Francisco, 1997.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1969.